Primeiramente,
acredito que devemos nos apresentar. Segundamente, esta história é “inarrável”. Não deu para
contar em poucas palavras. Encurtei o máximo possível. Vamos lá.
1ª parte - A ideia maluca
Juntos
podemos ser chamados de “um bando de malucos que tem motos de 180-260kg e as
usam em condições e lugares por onde só passariam motos de trilha”, como Yamaha
DT180 e Honda CRF 230, dentre outras similares bem conhecidas.
Separados,
um é fisioterapeuta, o outro é analista de sistemas, um programador de robôs e
um advogado tributarista, todos metidos um pouco a mecânicos e com muita
disposição para andar de moto qualquer dia, lugar e condições climáticas.
É,
essa é a palavra chave: disposição. Se você pensa em algum dia da vida
passar pela trilha do telégrafo, mesmo que seja a pé (que é mais rápido do que
qualquer outro meio de transporte que se mova pela terra), precisará de muita
disposição, além de ajuda de todos os que estiverem num raio de até 10km,
contribuição de São Pedro, do vento, dos animais quadrúpedes encontrados pelo
caminho, dos deuses, anjos da guarda e todos os demais seres invisíveis aos que
não são espíritas.
Quando
o fisioterapeuta nos enviou um e-mail com a ideia, logo em seguida o técnico de
TI mandou alguns vídeos do youtube com as histórias de jipeiros e trilheiros
que já passaram por lá desde a década de 80.
Pelo
que vimos nos vídeos e relatos, “o sistema é bruto”.
Não
é qualquer “motinha” que passa e tem que fazer muita força para arrastar as
motos quando encalham, caem, atolam, viram de ponta cabeça no rio (o programador de robôs que nos diga)...dentre outros fatores que atrasam a caminhada.
2ª parte - O deslocamento
Confirmamos
a data, preparamos a tralha (com barracas de camping incluídas) e numa sexta de
tarde nos encontramos no primeiro posto BR da BR-116 sentido Curitiba.
Seguimos
até parar num posto perto de Registro/SP para jantar, enchemos bem a barriga,
afinal depois dali a civilização não seria tão facilmente contatável. Curioso
que ao passar pelo caixa o programador de robôs e o advogado viram um daqueles salames
pendurados para venda e resolveram comprar. Essa viria a ser a melhor decisão
do fim de semana e esse o alimento mais precioso.
Pernoitamos
numa pousada em Pariquera—açu, a terra da batata suíça. Há somente pizzarias e
restaurantes que vendem batata suíça há décadas...curioso isso. Seria alguma
colônia isolada? Rs...
No
sábado de manhã abrimos a porta da sacada e do outro lado da rua havia um grupo
de urubus nos olhando. O que será que fariam por ali tão atentos? Será que big
trail no telégrafo é sinal de “alimento fácil” para eles?
Pois
bem, enchemos novamente a barriga e fizemos o deslocamento até a trilha. Bem
tranquilo o caminho.
3ª parte - A trilha - 1º dia
Mas
quando chega na trilha é um choque, pois você sai de uma estrada de terra
normal e de repente se depara com um rio atravessando o caminho, lama, madeiras
atravessadas, buracos... ou seja, a paisagem e a pista não vai mudando aos
poucos. Chega tudo de uma vez.
Passamos
o primeiro obstáculo, depois o segundo, terceiro... andando em três, dois
desciam da moto e iam ajudar um com dificuldade. Isso nos fazia ir e voltar a
pé a trilha várias vezes.
Para
andar os primeiros 500m levou quase uma hora. Estava sol, calor, desgastante.
Mas melhor que chuva, não é?
Depois
os próximos 500m foram mais uma hora...e por aí vai.
Atolamos,
atolamos e atolamos...e enquanto desencalhávamos as motos apareceu no horizonte
(não tão longe assim) um grupo de trilheiros, daqueles com motinhas pequenas,
mais apropriadas para o lugar. Quando chegaram até nós não acreditaram que
estávamos com aqueles tratores naquela lama.
Quando
começou a chover os tombos, escorregões e atolamentos viraram rotina (a cada 2
ou 3 minutos um estava no chão). Afinal, um trecho da trilha é feito de
madeiras atravessadas e andar sobre elas úmidas não é agradável.
Quando
a chuva apertou paramos debaixo de uma árvore (as motos ficaram na chuva mesmo)
para não molhar tanto. Colocamos as capas de chuva (estilo motoboy de SP) e
ficamos vendo a m. acontecer.
O
que era barro virou lama. Em seguida as poças começaram a ficar mais fundas.
Estava mole demais...difícil até parar em pé. Imagina então sobre a moto.
O
cansaço estava apertando e a fome já estava lá para as tantas quando passou um
grupo de locais com dois cavalos carregados de coisas. Olharam para nós naquela
situação e começaram a conversar. Nós só queríamos saber e perguntamos: “lá pra
frente é melhor”?
A
resposta não foi muito boa...
Havia
mais um rio para atravessar, depois da pinguela. E não seria fácil segundo os
locais.
Então
continuaram e disseram que iriam voltar para dar uma ajuda para nós.
Só
que escureceu...
Mas
eles voltaram, e com dois cavalos para ajudar.
Lá
para as tantas o advogado não aguentava mais ficar em pé, pois tem artrose no
tornozelo. Então largou a ST1200 lá e subiu no 4x4 e foi até uma casa que fica
à beira da trilha aguardar os demais. O fisioterapeuta levou a moto dele.
Juntamente com os locais que estavam ajudando a empurrar e a desatolar as motos
no escuro.
E
continuava a chover... até que o programador de robôs caiu com a moto de ponta cabeça no
rio, quebrou a bolha e alguma coisa do suporte do GPS.
Bem,
sem maiores danos, estava inteiro e a moto foi retirada do rio... rio de lama.
Funcionava normalmente.
Seguiram
viagem até chegar na tal casa enquanto o da ST1200 montava as barracas sob a
chuva para dormir num gramado enxarcado.
Os
locais que nos ajudaram disseram que no dia seguinte voltariam para dar mais
uma força. E que força!
Cada
qual com sua barraca, trocamos de roupa, comemos alguma coisa (barrinha de
cereal, etc...) e capotamos. Já era quase meia noite.
Choveu
quase a noite toda, então imagina como estava de manhã. Você tem uma chance só!
Era
lama sobre lama.
3ª parte - O 2º dia de trilha
As
7.30h os locais estavam lá para nos ajudar a seguir a viagem.
Inacreditavelmente
estava até mais fácil pilotar naquela manha, apesar da lama.
Seguimos
viagem até novas pinguelas e atoleiros. Quando vimos uma casa (a do Riquinho)
paramos e nos ofereceram café e bolacha. Cara...foi a refeição mais calórica
das últimas 36 horas. Aliás, foi a única, fora alguns pedaços do salame que
compramos no posto 6ª e comemos de café da manhã.
O
resto não foi tão difícil, fora as subidas de lama. Mesmo com pneus apropriados
as motos não tracionavam.
E
no trecho de pedras foi difícil passar, pois cair lá seria difícil. As motos
mal cabiam meio as pedras.
Mas
enfim, foi tudo bem.
Chegamos
à fronteira de SP/PR e a única coisa que há é um marco de concreto. E eu achei
que haveria uma daquelas placas “Posto fiscal à frente” kkkkkk
Depois
de algumas subidas e descidas estávamos no fim da trilha, já era estrada de
sítio e quase 4 da tarde.
Então
paramos na casa de um dos locais (o Tatu) para almoçar e a irmã dele preparou o
melhor arroz com feijão e frango que eu comi nesta década.
Estava
faminto...famintíssimo.
4ª parte - A ilusão do fim
Eu
falei fim da trilha? Ops, sorry, era o fim da lama. Depois havia um deslocamento
enorme até Guaraqueçaba no litoral do Paraná, onde havia o posto de combustível
mais próximo.
A
XT660 e a ST1200 pararam no caminho, tanque vazio. A XT ficou, a ST pegou um
empréstimo da Sertão e seguiram em 3 até Guaraqueçaba, onde a gasolina tem preço
com padrão de prostíbulo, se é que vocês me entendem.
O
analista de sistemas com a Ténéré660 voltou para levar gasolina para XT660 do
fisioterapeuta enquanto o advogado parecia feliz ao acreditar que dali em
diante era só asfalto.
Mera
ilusão, foram mais 100km de noite, debaixo de chuva, até Morretes.
E
aí, como se faz para subir a Estrada da Graciosa sob chuva e neblina (depois da
trilha do telégrafo, só para lembrar para vocês) e chegar a São Paulo sendo que
já eram 22h da noite?
Ah
amigo, só de avião. E como ninguém carrega avião no alforje o jeito foi dormir
por lá. O analista de sistemas e o programador de robôs ficaram em Morretes/Antonina. O
fisioterapeuta e o advogado trabalhavam bem cedo na 2ª feira e tiveram a leve
ilusão de chegar a SP naquela noite. Nada feito, subiram a Graciosa sob neblina
meio aos acidentes (havia 3 carros capotados) e pararam pouco depois de Campina
Grande do Sul num hotel de posto de beira de rodovia.
No
dia seguinte, para fechar, 5 horas de “deslocamento” do PR ate SP pela BR-116
em obras. É mole ou quer mais?
Chegamos
a SP na 2ª por volta das 11/12h cansados, com a alma lavada e as motos e roupas
imundas.
DICAS PARA VOCÊ QUE QUER IR PARA A TRILHA DO TELÉGRAFO:
Se
você leu isso e quer ir para a trilha do telégrafo, aí vão as nossas dicas:
1
– não vá para lá.
2
– é isso mesmo, não vá, esteja chuva ou sol.
3
– se você é teimoso e quer ir, convença outro louco a ir contigo, jamais vá
sozinho. Depois de aceitar não pode desistir. E quando chegar lá não pode dar
pra trás, nem reclamar. Leia esse tópico inteiro antes.
4
– leve comida, avise a patroa que lá não tem energia nem pega telefone. Abrace
ela forte, dê um beijo nas crianças e faça um cafuné no cachorro. Mande uma
mensagem para seus pais e avise que você gosta muito deles. Diga no seu
trabalho que talvez você se atrase 2ª feira.
5
– leve mais comida, você pode precisar.
6
– leve uma barraca e uma muda de roupa seca dentro de sacos plásticos
impermeáveis sem a mínima possibilidade de entrar água dentro (quem sabe vc
dorme seco). Lá não tem hotel, nem comida, nem energia, nem bar nem nada. Só
não precisa levar água, lá tem bastante.
7
– leve uma corda, não, leve duas, três...quatro! Uma para cada moto.
8
– você tem certeza que quer ir mesmo?
9
– tem certeza que vai mesmo ou ta de brincadeira?
10
– já que é assim, então me convide para ir contigo, será um grande prazer
passar esse perrengue outra vez!
Abaixo, ilustrações da narração acima:
A turma da trupe. Da esquerda para a direita.
- Luís / Advogado / ST1200
- Luciano / Fisioterapeuta / XT660
- Tiago / Analista de sistemas / Ténéré660
- Laércio / Programador de robôs / BMW Sertão
Os urubus na frente da nossa sacada ao amanhecer - qual era a esperança deles?
Essas são as "boas vindas" da trilha. Os primeiros 20m.
1º obstáculo da trilha (acima)
Ufa, passei
Precisa falar alguma coisa? Tá vendo a corrente? rs
Acima, após construir uma "ponte", fomos atravessar a ST1200.
A ravessia.
Afundando...
Caída na beira da lama, afundou na grama...
E aí, ninguém vai ajudar? São 260kg seca, mais bagagem e acessórios da 300kg (6 sacos de cimento)
A lei da gravidade vale para todos, e várias vezes...
Descansando no sol. Deitar no mato era uma boa ideia, um dos poucos locais secos da trilha.
E aí, que você faria para passar aí? Iria pelo meio ou pelas laterais?